Crianças de rua sobrevivem perante indiferença na Cidade do México
Por Asela Viar, da EFE, 08/06/2012 08:00
Sem ajudas sociais nem suporte familiar, as crianças e jovens da rua representam o rosto mais visível da pobreza na Cidade do México, uma metrópole de 20 milhões de habitantes, onde elas lutam para sobreviver no meio da indiferença
A pobreza infantil não é monopólio dos países em desenvolvimento, segundo um relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Na foto, uma criança dorme na rua na Cidade do México
Passaram-se sete anos desde que Karen decidiu abandonar sua casa. A conduta de seu pai, com problemas de drogas e álcool, acelerou a fuga desta jovem que agora tem 21 anos. "Havia agressões, discussões e decidi ir embora", conta no meio da penumbra que inunda seu pequeno barraco localizado no coração da Cidade do México.
Em pleno Paseo la Reforma, uma das principais avenidas da capital mexicana, e não muito longe do emblemático Monumento à Revolução, uma dezena de humildes construções se erguem em um pequeno terreno que serve para separar o tráfego da avenida principal de uma pista para novos empreendimentos.
Junto com outros três companheiros de acampamento, Karen relata com uma surpreendente serenidade como acabou em um barraco feito de papelão, plástico e tecido: "Cheguei a um abrigo aqui em Cuauhtémoc e daí conheci a droga e tudo isto, e já comecei a me drogar e a ficar na rua".
Dois de seus acompanhantes abrem a mão e mostram timidamente uma bolinha de papel branco impregnada em um solvente que eles chamam de "ativo", uma mistura de substâncias derivadas do petróleo com graves efeitos para a saúde, muito popular entre os jovens sem teto por causa de seu baixo custo e sua facilidade para consegui-lo.
Dados incertos
Segundo a última apuração do Governo do D.F, 4.326 pessoas vivem na rua, sem detalhar quantos são menores, jovens ou adultos. No entanto, as ONGs advertem que o número pode variar. "É muito difícil ter números precisos e confiáveis sobre quantas crianças e jovens estão em situação de rua, por causa da particular invisibilidade e mobilidade que os caracteriza", assegura à Agência Efe a Chefe de Proteção do Unicef-México, Alison Sutton.
A situação, segundo sua opinião, é sumamente delicada por causa das razões que se escondem por trás destes jovens sem lar, como falta de recursos, violência familiar, abusos e discriminação, e é imensa a necessidade de implementar políticas que ajudem as famílias a poder assumir seus filhos antes que abandonem sua casa.
Meninos de rua se intoxicam com inalante em um parque público da capital mexicana
Caso contrário, assinala Alison, meninos e meninas são expostos, que em alguns casos ainda são menores, a uma situação de total falta de defesa e falta de proteção, onde o trabalho infantil, a exploração sexual e a carência de serviços básicos como a educação e a saúde os espreitam.
Segundo o relatório do Unicef sobre o "Estado Mundial da Infância 2012", mais de um bilhão de meninos e meninas de todo o mundo vivem em ambientes urbanos e um número crescente deles enfrentam situações de marginalização e privações.
"Em situações de marginalidade e exclusão na cidade, o estresse é maior inclusive que em situações rurais, pois pode ser que a questão da moradia, da pressão para o trabalho infantil sejam muito fortes", adverte Alison.
Além disso, segundo o mesmo relatório, as penúrias que crianças e jovens sofrem em comunidades urbanas ficam ocultas e perpetuadas devido à falta de programas de desenvolvimento, muitos dos quais não contam com as ferramentas suficientes para atender os que estão vivendo na rua.
"Uma vez na rua, realmente estão expostos a muitos riscos, portanto é muito importante que se crie uma coordenação entre instituições e entre todos os atores para poder prevenir e responder a possíveis violações de seus direitos", diz a especialista das Nações Unidas.
Ajuda cidadã
Embora os jovens se queixem amargamente que o mais doloroso é ver a indiferença e o desprezo das pessoas, a insuficiente ajuda institucional que recebem contribuiu para que proliferem cidadãos anônimos, organizações e associações que, quase sem meios, tentam suprir as carências governamentais.
Segundo dados oficiais na América Latina existem 40 milhões de crianças nas ruas, o que representa mais de um terço dos 100 milhões que subsistem no mundo em grave situação. A Organização das Nações Unidas declarou 1º de junho como o Dia Mundial da Infância
Dispostos em uma caótica fila, praticamente todos os habitantes do acampamento esperam com impaciência que chegue sua vez de receber um prato de arroz, salsichas e omelete com milho cozido por Concepción, uma aposentada que aos 70 anos traz comida para eles de vez em quando.
"Há vários anos que eu comecei e depois meus filhos, viemos para trazer-lhes comida pelo menos uma vez ao mês, porque Deus nos dá o pão da cada dia e estes pobres rapazes não o têm, então tentamos trazê-lo e compartilhá-lo com eles", explica enquanto serve a comida disposta em duas grandes panelas no porta-malas de um carro.
Além da ajuda espontânea, existem várias organizações da sociedade civil, focadas na atenção direta e estruturada destas crianças e jovens da rua, que se transformaram no único suporte ao qual podem se agarrar.
"Geralmente no México, as pessoas os veem se aproximar para lavar um vidro e os julgam, os chamam de drogados, por isso queremos praticar com eles, saber por que estão na rua e trabalhar com eles para sua reabilitação", diz Eduardo Zabadúa, diretor do projeto "Ponte em mi lugar" ("Ponha-se no meu lugar").
Os voluntários, além de organizar jornadas de convivência onde proporcionam aos jovens roupa, comida e assistência sanitária, se encarregam de fazer um registro e acompanhamento dos casos, especialmente daqueles que decidem finalmente se internar em um centro de recuperação.
"Jóvenes la raza"
Debaixo de uma ponte, em uma casa com uma cortina fazendo as vezes de porta, uma umidade asfixiante e o ensurdecedor barulho dos carros passando sobre suas cabeças, cerca de 50 jovens tentam se recuperar de suas dependências, aprender um ofício e sair da rua.
Crianças e jovens da rua representam o rosto mais visível da pobreza na Cidade do México
O centro denominado "Jóvenes la raza", fica em uma casa que está a ponto de ser cedida pela Prefeitura e é administrada pelos internos que já estão praticamente reabilitados, os chamados "medias luces", que se encarregam das oficinas, manutenção e organização.
Com 18 anos, Maricruz já é "media luz" e se encarrega da oficina de padaria onde ensina aos outros jovens a fazer pão e biscoitos, os mesmos que depois tentarão vender pela rua para conseguir fundos com os quais se abastecer e comprar o básico para viver.
"Comecei a me drogar aos 14 anos e já tinha uma toxicomania de dois anos. Cheguei até aqui um dia à base de tanta solidão, da rejeição da sociedade, de ter uma família disfuncional, de não ter apoio", conta sentada no quarto de visitas, onde um cartaz emoldurado diz "Unidade, serviço, recuperação".
Apesar de ter completado recentemente a maioridade, Maricruz fala com uma assombrosa maturidade e assegura que o mais difícil foi conhecer a si mesma: "A dependência me levou a muitas coisas, a andar na rua, a passar frio, a andar sem comer, a estupros e a chegar aqui e falar essas coisas, pois não era fácil", lembra.
Alguns centros têm fama de estritos, de utilizar métodos pouco afetuosos com os internos, mas Maricruz explica que aqui não maltratam, nem batem em ninguém. Sabem, diz, qual é dor e o sofrimento de alguém que bate na porta pedindo ajuda, porque já não pode mais suportar a fome, o frio, a solidão.
"Vale a pena olhar para frente. Eu caí, passei o que tive que passar, mas hoje digo que sim, há um futuro. O processo é difícil, mas se dar conta de que vale a pena é bom demais", assegura.